sábado, março 10, 2012

Batsu Sai 抜塞

por Marcos Piolla

Shurijo

Penetrar uma fortaleza?? Acho que não...

Nos primeiros livros de Funakoshi-sensei (1922 e 1925), o nome do kata Bassai aparecia escrito foneticamente:パツサイ (“Bassai”). Ou seja, em katakana, escrita fonética designada no Japão para escrever palavras e nomes estrangeiros (Funakoshi era de Okinawa e, portanto, considerado estrangeiro), o que não nos dá nenhuma dica do significado da palavra Bassai, apenas o SOM. 


Contudo, BASSAI, como nos indicam os katakana, pode ter diferentes escritas em kanji e, consequentemente, variados significados:

a. 抜砦 "Extrair / uma fortaleza";
b. 発塞 "Remover o / um obstáculo";
c. 抜塞 "Extrair / embarricar".
 

Em “Karate-do Kyohan” (1935) o nome do kata apareceu como “Bassai Shodan” (塞初段) portanto, baseados no próprio modelo escrito por Funakoshi, escolhemos a terceira opção de Kanji para descrever Bassai.


Separando e esclarecendo os kanji:

- NUKU (ぬく) extrair, remover (leitura kun’yomi)
- FUCHIGU (ふちぐ) bloquear, obstruir (leitura kun’yomi)


Juntando e buscando traduções possíveis:
抜塞 - BASSAI (パツサイ) "bloquear e remover", "bloquear e extrair", "obstruir e remover", "obstruir e extrair" (leitura on’yomi)
 


Comumente descrito como "derrubar uma fortaleza" ou "invadir uma fortaleza ou castelo", percebemos de imediato que, em nenhum momento a combinação de kanji nos sugere uma invasão em fortaleza alguma.


Agradeço ao amigo, Denis Andretta. que fez a revisão desse texto com relação à leitura e significado dos kanji. Me disse também que a pronúncia Batsu Sai não existe, pois: 
" este (Tsu) que aparece na palavra パツサイ (Bassai) escrita em Katakana serve para indicar uma pequena pausa na pronúncia, ou seja, que o termo deve ser lido “ba - sai” (aquele “s” dobrado é como se fosse uma separação de sílabas para nós)... " o nome do artigo é apenas ilustrativo, mas vale ressaltar.


Outra coisa que não ajuda é o fato de que a interpretação dos kanji varia da China, para a Korea, para Okinawa e pro Japão e, mais ainda, de 1800 para os dias de hoje. Pelo que eu vejo, a cultura de Okinawa é muito mais próxima da China do que do Japão e, tanto Funakoshi quanto seus professores eram versados nos clássicos chineses e seus idiomas. É mais provável que de todas as interpretações possíveis, a Japonesa seja a menos plausível.


De qualquer forma, todos que sabiam isso estão mortos ha muito tempo e jamais teremos certeza...


O nome Bassai nos foi passado adiante, de geração em geração, através de Funakoshi (de Okinawa) e Nakayama (do Japão) e, claro, veio cair aqui. Nós, que não falamos nem japonês nem uchinaguchi (idioma de Okinawa), e pior, não lemos em kanji, nunca poderíamos saber que Bassai, taticamente, NÃO É nem tem nada a ver com "invadir uma fortaleza", mas o completo oposto!


Maquete do Castelo de Shuri com os Keimochi enfileirados


Matsumura, um gênio, era o chefe (ministro) da segurança de toda Okinawa. Era o guarda-costas pessoal da família real com um time de "burocratas", todos nobres e letrados que, na verdade, eram um time de elite de Karate-ka. Eram os Keimochi.
(Jovens de famílias nobres de Okinawa cujos membros tornavam-se, depois de passar num exame, oficiais do governo de Shuri)


Desfile no Castelo de Shuri com indumentárias tradicionais dos Keimochi


Okinawa não tinha exército e os keimochi eram proibidos de portar armas pelo shogum, assim como treinar lutas. Por isso treinavam escondidos, à noite, pois se fossem descobertos perderiam a cabeça e iniciariam uma crise internacional.


Assim, Matsumura recrutou, treinou e ensaiou inúmeras manobras táticas com seu time, para lidar com as ameaças que pairavam sobre as suas cabeças. Essas manobras foram armazenadas nos KATA que conhecemos, treinamos e executamos, sem saber por quê nem pra quê.


Comodoro Perry com seus soldados no Castelo de Shuri em 1853

Durante a "visita" do Comodoro Perry ao castelo de Shuri, Matsumura mesclou seus homens com os invasores. Ele os disfarçou de garçons que serviam as bebidas e comidas aos oficiais. Ao menor sinal de violência, os homens de Perry estariam rodeados de keimochi.

Os Keimochi fingindo ser garçons circulando com bandejas entre os soldados

Seu maior pesadelo, como chefe de segurança, era uma invasão ao Castelo de Shuri, governo e moradia da família real. Ao menor sinal de invasão ou ataque a um chefe de estado, o que um time de segurança faz?

Parte da equipe, o time de reação, detecta o perigo e o confronta, colocando-se entre ele e o alvo, frustrando o ataque e, se possível, neutralizando os atacantes. O outro time, de extração, agarra o alvo / rei / presidente / papa / celebridade e, como um escudo humano, abre caminho rumo à uma rota de fuga previamente estabelecida. ( Sobre isso falarei em um outro artigo...)

Time de guarda-costas no momento da extração
 
Parece lógico, né? Já vimos isso em ações de seguranças em atentados a chefes de estado... pois é, em 1853, Matsumura já tinha pensado tudo isso e enfrentado essa situação. 


Sendo assim, Bassai de fato simula uma invasão no castelo, mas não somos nós os invasores, e sim, neste caso, os defensores. 


Bassai é parte da manobra tática de REAGIR (à ofensiva) para EXTRAIR (o rei) E BLOQUEAR ou EMBARRICAR (os perseguidores).

Ele não é o único kata involvido nessa manobra, mas é primordial. Nos artigos subsequentes, explicarei o papel de outros kata nesse esquema...


Se invadirem nossa fortaleza, temos que extrair () o rei e bloquear () o avanço dos invasores, primeiramente atacando e nos mesclando com os inimigos, girando e machucando todos em nosso caminho, com um único golpe (Ikken-hissatsu), gerando o caos. Derrubando-os e fazendo-os tropeçarem nos colegas caídos. Nos mesclando com o inimigo o impossibilitamos de usar suas pistolas, pois acertariam uns aos outros.


Por isso o time de reação nunca recua, mas vai de encontro ao agressor, parando seu momentum para dar tempo do time de extração remover o alvo do ataque.

Antes que possam se organizar e tentar uma segunda investida, o rei já foi extraído e, só então, voltamos para o início, abrindo caminho à porradas, e embarricamos a passagem com os corpos dos atacantes antes de fugir, se possível, ou lutar até o fim para que o time de extração possa fugir com o rei pelos túneis subterrâneos. Esses túneis ainda podem ser visitados nos dias de hoje.

Percebem que essa linha de ação (enbusen) em forma de "H" é característica dos kata de Shotokan? (na verdade eram originalmente em forma de setas e ainda são praticados dessa forma em inúmeras escolas)


 

Porquê essa obcessão do Shotokan de terminar no mesmo lugar?

Porque é a única porta para a rota de fuga.

Porta escondida atrás do trono do rei em Shuri

Ficava escondida na parede atrás do trono real no salão principal do castelo de Shuri.

Se você não conseguir estar lá à tempo, a porta vai fechar e você vai morrer. Com honra, lutando até o fim, heroicamente, mas vai morrer...
Springfield Rifle-musket usado pelos Marines em 1850
 
Por isso a volta, nos kata de embusen em formato de "H" é sempre mais frenética e direta do que a ida. A mesma coisa acontece em outros kata criados por Matsumura como Meikyo (Rohai) que tem como características ataques (sim, os bloqueios são ataques) em todas as direções com arremessos e um final que o permite passar pelo oponente deixando-o caído (sankaku tobi) ao voltar ao ponto de partida, ou seja, a porta. O adversário caído atrapalha o avanço de outros dando tempo para que escapemos. Esse padrão de volta mais intensa com uma queda no final se repete no Karate de Matsumura...


Se executarmos o Bassai em velocidade de luta real, sem pausas, ele cai para 30 a 35 segundos. Esse era o tempo exato pra carregar um rifle Springfield, comumente usado pelos Marines naquela época. Mais de 35 segundos de luta, os tiros começam e o Karate já era.

Antes que isso aconteça, o Bassai mostra técnicas de desarmamento de rifles com baionetas presentes em quase todos os manuais de combate modernos. Matsumura e seu aluno Asato (Mestre de Funakoshi) eram graduados em Jūkendō, que é a esgrima com baionetas.


Seguem alguns exemplos de formas de combate com baionetas...


Porquê o Bassai é o kata obrigatório para Shodan? Porquê é tão essencial para um Karate-ka dominar esse sistema?


Porque, para Matsumura, se você não consegue ser efetivo em reagir, extrair e embarricar, transformando DESVANTAGEM (numérica e em armamentos) em VANTAGEM (técnica, tática, surpresa e eficiência), você simplesmente não está pronto pra ingressar em seu time de guarda-costas de elite. 

Bassai é a personificação da arte dos desesperados. Como já falei antes, Karate é ESTAR PRONTO para o desespero. É BASSAI.

OSS!

4 comentários:

  1. Oss,

    Cai de pára-quedas em sua página e, de cara, encontrei este artigo intrigante, pois contraria, de modo racional, os ensinamentos "modernos" acerca do "Bassai". Deixo apenas minha observação para que trechos do conteúdo desta publicação esteja acompanhada de suas respectivas fontes, pois, apesar de parecer muito metódico, dará maior credibilidade, inclusive, para estudiosos poderem confrontarem suas teses.

    Parabéns pelo artigo!

    Oss.

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    1. Legal que gostou. Não tenho pretensões a escrever teses formais, mas sim artigos pessoais que refletem minhas opiniões sobre os tópicos que abordo. Ainda assim, pode-se encontrar muita informação à respeito do que falei em livros tais quais: Karate-Do Kyohan, Ryu Kyu Kempo Toudi e My Way of Life de Funakoshi; Weaponless Warriors de Richard Kim; Okinawan Karate de Mark Bishop e Shotokan Secrets de Bruce D. Clayton. O Bubishi traduzido por Patrick Mc Carthy e The Samurai Capture a King - Okinawa1609 de Stephen Turnbull são exelentes fontes de background histórico.

      OSS!

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  2. Oss Marcos Sensei

    gostei muito destas opiniões que o Sr. formou sobre a perfilação dos katas...
    por favor continue nos brindando com estas opiniões ...

    Oss
    alberto

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  3. Lindo! Shotokan é mesmo esse espírito literário e marcial, organizado, claro e preciso. É a pena e a espada!

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Dream Team

Dream Team
Equipe do Rio de Janeiro. Da esquerda para a direita: Inoki, Fernando Athayde, Ronaldo Carlos, Hugo Arrigone, Paulão, Zeca Kriptanilha, Luciano e Flavio Costa. Falta nessa foto apenas o grande Victor Hugo Blanco Bittencourt..