quinta-feira, fevereiro 16, 2012

Desmistificando os Kata


por Marcos Piolla.

Busaganashi - estátua mitológica chinesa que representa as artes marciais e comércio.
A prática do Karate, como um todo, mudou muito desde sua introdução no território japonês por Funakoshi Sensei. Duas dessas mudanças, porém, têm me deixado com sensações ambíguas: tanto serviram para elevar o nível técnico dos praticantes como serviram para afastar os karate-ka do Karate-Do.

1: A "esportificação" do Karate. 
2: A mística que se criou em torno dos kata.


A primeira foi uma das (mas não a única) responsável pela segunda e, é nessa (a segunda) que me focarei hoje:
Primeiramente, a pergunta que TODOS deveriam fazer no primeiro dia e poucos jamais fazem, mesmo depois de décadas treinando: O QUE É UM KATA? Quantos karate-ka sabem o que responder, de imediato, sem cair no óbvio? Sem repetir como um papagaio aquilo que vêm ouvindo desde a primeira vez que vestiram um do gi? Bla, bla, bla... é um exercício de forma, bla, bla, bla.... serve pra trabalhar a coordenação motora, coisa e tal... tudo BALELA.

Pior ainda. Pra que SERVE um kata? Pra que TE SERVEM os kata que você vem repetindo ha décadas, numa busca icessante pela perfeição que, de fato, não vai te trazer NENHUMA melhoria a não ser, talvez um aperfeiçoamento na forma e uma melhora na saúde cardio-vascular que, verdade seja dita, você consegue igualmente treinando kihon. Se você não sabe responder essa pergunta, é porquê está fazendo algo errado ou não está fazendo algo que deveria... que desperdício!

Quando eu era bem jovem, antes mesmo de me graduar shodan, eu costumava pensar e dizer que os kata são "bancos de dados". Apesar de ser uma explicação simplória de um jovem que ainda não tinha idéia do que é Karate, eu não estava de todo errado. Ainda assim, eles são muito mais do que isso. Como em qualquer sistema, e sim, os kata são sistemas, o todo é muito mais do que a soma de suas partes. E eu (não só eu) já havia dito isso antes...

Então vamos lá... o que é um SISTEMA? Um SISTEMA é um grupo interconectado de elementos, organizados de forma coerente para que atinjam a um objetivo. (Thinking in Systems by Meadows, 2008).

Essa definição ressalta três coisas: Os Kata têm elementos que têm interconexões e têm um propósito.

Os elementos são os kyodo (movimentos). Pra saber quais as interconexões entre eles é preciso saber o que eles são. Qual a aplicação? Tem coisas que são óbvias e outras nem tanto. Tem outras que, pior ainda, parecem óbvias, mas não são. Como saber a aplicação correta? Tem gente que acha que NÃO TEM UMA APLICAÇÃO CORRETA...

Muitos pregam que aplicação correta é a que funciona. Pode ser..., mas eu não concordo. Acho que cada kata foi criado com um propósito em mente. Cada um tem um tipo de desafio específico e seu criador, depois de passar várias vezes por um tipo de experiência e ter sobrevivido, aprimorando seu sistema e treinando em situações reais de combate, compilou as lições aprendidas à duras penas num kata com um propósito específico em mente.

Bem, a pergunta simples cuja resposta serve pra desvendar cada kata é: QUAL É O PROPÓSITO DESSE SISTEMA ???? Se você não souber o propósito, não tem como saber qual a aplicação de cada kyodo e nem qual a relação dele com o próximo. Seu sistema não passa de uma exibição de estética e habilidade atlética que, apesar da graça e beleza, não passa de UMA DANÇA!

Uma pergunta que deve estar passando em sua mente agora é: por que nós não sabemos usar nossos sistemas, ou seja, por que não conhecemos seus propósitos, suas aplicações e suas interconexões? Porquê os professores dos nossos professores não aprenderam isso. E porque??? Porquê todos eles eram japoneses e os "bons japoneses" não fazem perguntas, não questionam. Recebem de bom grado o que lhes ensinam seus Mestres e nada mais...

Outra razão foi a criação do esporte Karate. Uma instituição onde um karate-ka enfrenta outro karate-ka obedecendo regras restritivas que tornam a reflexão sobre os propósitos das técnicas nula. À partir daí, TODA TÉCNICA É PARA SER USADA CONTRA OUTRO KARATE-KA. Isso nunca foi o objetivo dos criadores dos kata, até mesmo porquê, não haviam muitos karate-ka e, os que haviam, estavam juntos lutando contra os invasores e inimigos do rei de Okinawa.

Outro fator que contribuiu para essa ignorância é o próprio kata. Esses sistemas são tão eficientes como treinamento técnico e, principalmente, tático que podemos ensinar um aluno um kata, preparando-o para cumprir uma missão e, só depois que ele estiver pronto e o momento certo surgir, dizemos à ele qual o objetivo da missão. Lindo! O problema é que Itosu, Asato e o velho Matsumura estavam ensinando jovens nascidos de famílias nobres de Okinawa que, graças à restauração Meiji (1869 - ano do nascimento de Funakoshi), o rei de Okinawa foi deposto e o governo acabou. Okinawa virou Japão e seu rei foi morar em Tókio levando Asato (Ministro do exterior e Mestre de Funakoshi) com ele.

Itosu continuou treinando esses jovens nobres falidos (perderam o subsídio do governo e cresceram na pobreza) para que, se o rei e o governo de Okinawa fosse reestabelecido algum dia, Eles estariam prontos pra tomar o lugar dos Keimochi, Matsumura, Asato, Itosu, Aragaki, Chofu Kyan (pai de Chotoku Kyan), Kosaku Matsumora e Oyadomari, entre outros, na defesa do castelo de Shuri. Cada um deles ensinou alunos que NUNCA APRENDERAM as aplicações dos kata nem seus propósitos táticos.

O rei de Okinawa morreu naturalmente em Tóquio no ano de 1905 e Asato o seguiu aos 78 anos. Nunca mais haveria um governo Okinawense e Itosu não tinha mais porque explicar a missão para a qual seus alunos tinham sido preparados desde a infância. Quando perguntavam sobre as aplicações, ele respondia que isso era irrelevante e que eram jovens que não iriam enfrentar ninguém, portanto, não tinham que se preocupar com isso. Os mandava treinar os kata que conhecemos hoje, pois os manteriam saudáveis e lhes daria longas vidas. Se, por um acaso, tivessem que lutar, o condicionamento de uma vida, socando makiwaras e executando os kata já seriam suficientes.

Pensando nesses benefícios em saúde e longevidade, Itosu escreveu ao ministério da educação, em 1906 (com seu rei já morto), sugerindo que o Karate fosse ensinado nas escolas okinawenses. Funakoshi, que era professor primário, um EDUCADOR, foi quem primeiro instituiu essa prática para os cidadãos comuns nas escolas. O Karate não era mais secreto. Ou era? Difundiram as técnicas e os kata aos quatro ventos mas ninguém sabia como utilizar o sistema...

Mais tarde, em 1922 Funakoshi ficou amigo de Gigoro Kano (fundador do Ju-Do) que já era famoso e proeminente no Japão. Foi para Tóquio pra ensinar à pedido dele e, o primeiro dojo de Karate do Japão foi dentro do próprio Kodo-Kan (sede do Ju-Do do Mestre Kano). Os japoneses desprezam os Okinawenses e, para que o Karate fosse aceito no Japão ele teria que se enquadrar como forma de BUDO. A Dai Nippon Butokukai, órgão que regulamenta os ESPORTES originados em BUDO exigia uma padronização. Como so Judo-ka, os karate-ka tiveram que usar do-gi (kimono) e ser graduados por faixas.

O Japonês é fanático por conformismo e padronização. Os kata deveriam ser demonstrados como um ritual belo e plástico, como a cerimônia do chá e, pouco se lixavam se aquela forma era a inicialmente planejada por seu criador. O kata virou dança e teatro...

Como, então, quem não quer ser apenas um bailarino, descobre os propósitos de cada kata, se não há nenhum registro escrito e os que sabiam já morreram ha mais de 100 anos? Pois é, não facilitaram nossa vida. Felizmente existem relatos históricos de como era a vida naquela época, como viviam os pais e avós do Karate e quem eram seus inimigos, como lutavam e quais eram as armas que usavam.

Felizmente, para nossa pesquisa e, infelizmente para o mundo, o ser humano vem se matando desde que o primeiro homo-sapiens infestou as planícies africanas ha 2.000.000 de anos. Sempre teve duas pernas, dois braços e uma cabeça ligados por um tronco. Não é possível que ninguém mais tenha criado um sistema semelhante pra matar seu semelhante antes dos Keimochi.

Analisando outras formas de combate desenhados para situações similares às dos Keimochi do castelo de Shuri, podemos reconhecer posições e técnicas idênticas às dos kata que treinamos ha décadas. Ao olhar através da história, conseguimos, finalmente, ter uma idéia plausível dos propósitos de cada kata e, consequentemente, das aplicações dos seus kyodo e suas interconexões.

Baseados nisso, podemos aprender os princípios embutidos nos kata e, treinando, colocá-los em prática. Só assim, desmistificando-os, esquecendo as apresentações estéticas (que EU ajudei a propagar) e aprendendo como usar os sistemas, deixamos de ser bailarinos.

De volta aos sistemas, os melhores e mais eficientes são os adaptáveis, dinâmicos, auto-preservantes e que, orientados à seu propósito, exibem comportamentos evolutivos. Como fazemos isso? Bem, reconhecendo que, como uma fita de DNA, os movimentos dos kata são princípios a serem dominados e não movimentos a ser decorados e executados padronizadamente como reza a Dai Nippon Butokukai. Princípios. Com propósitos e não somente métodos.

Como disse o grande Tomas Edison: "Se você aprende métodos, ficará amarrado à esses métodos, mas se aprender princípios, então poderá criar seus próprios métodos."

Desmistifiquemos os kata, decifremos seus sistemas e aprendamos seus princípios!

OSS!

6 comentários:

  1. Ótimo texto! Concordo em número e grau com tudo que está escrito aqui. Tenho realmente muita vontade de aprender os katas de verdade, não apenas sua coreografia, e fico feliz de ver gente querendo o mesmo aqui no Brasil.

    OSS!

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  2. Que legal que acha isso. É só treinar de acordo que a coisa faz mais sentido.

    OSS!

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    1. Parabéns Piolla. Grande matéria. Tem gente boa que pensa que kata não serve para nada. Acho que não conseguem entender. Sensei Flávio explicou muito bem. Serve de lição para muitos e para outros continuaram e morreram sem entender. Oss

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  3. foi a melhor explicação que já li sobre karate. infelizmente virou uma bagunça. arte/esporte/defesa pessoal, no final a gente acaba com um aglomerado de coisas misturadas. um kickboxe de kimono. desculpem o desabafo, osu.

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  4. Realmente kata virou uma ótima coreografia que resulta em considerável condicionamento físico; vejo relatos de mestres que já treinaram 50 ou 60 repetições de kata em um único treino.

    Já existem casos de pessoas que criaram seus próprios estilos de karate sem o kata como elemento de estudo. Desistiram de tentar desvendar os movimentos ali contidos e não viram muita utilidade nessa prática?


    Muito legal o blog.

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Dream Team

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Equipe do Rio de Janeiro. Da esquerda para a direita: Inoki, Fernando Athayde, Ronaldo Carlos, Hugo Arrigone, Paulão, Zeca Kriptanilha, Luciano e Flavio Costa. Falta nessa foto apenas o grande Victor Hugo Blanco Bittencourt..