Katawa Guruma |
Ainda fico chocado (sei que não deveria) quando ouço de um ou outro professor algo do tipo: “...mais isso é agarramento. Luta agarrada. Não é Karate!” - ou até coisas como: “Karate é pancada! Não é agarramento!”
Será que o ser humano não sabe mais ler? Ou será só aqui que temos assustadores 80% de analfabetos funcionais?
Não acredito que ainda hoje é possível realmente um karate-ka crer que não há GRAPPLING no Karate. Ou que não havia, até recentemente, apesar das evidências IRREFUTÁVEIS. Quando jogamos fora e não estudamos nem treinamos aquilo que deveríamos não mudamos o fato de que, (pasmem!), há sim e sempre houve grappling no Karate!
Tanaka Sensei |
Nessas horas eu sempre lembro de uma coisa que Tanaka Sensei me falou quando discutíamos bunkai: “Karate, antes, era (para ser usado contra) todas lutas! Hoje Karate é só para Karate…” Se era para enfrentar qualquer situaçãode luta, como lidamos com grapplers? Pois TODA vez que vi um karate-ka tentar usar os golpes padrão de Karate de competição contra um bom grappler, o resultado foi desastroso!
Como os antigos Mestres lidavam com isso e eram, comprovadamente, tão eficientes?
Itosu Anko |
Na carta enviada pelo grande Itosu Anko (um dos Professores de Funakoshi Sensei e criador dos Heian) em 1908, ele definiu o propósito do Karate tradicional como: “... não é designado para ser usado contra um só oponente em um combate consensual (como um duelo ou desporto), mas sim, como uma forma de evitar ferimentos usando os pés e mãos se por acaso nos depararmos com um vilão ou rufião.” Ele deixa claro que é um sistema de auto-proteção civil, e não um esporte com regras e limitações.
Na mesma carta ele também atesta: “Entrada, contra-ataque e evasão é a máxima do Torite.” Torite é o nome antigo para grappling e traduz-se literalmente como “capturar as mãos”. Ele nos está explicando que a maneira do Karate de lidar com o grappling é adentrar, causar algum dano e, assim que possível, evadir-se. Isso corrobora ainda mais a teoria que apresentei no artigo sobre Bassai. (http://www.flaviocosta-karatedo.com/2012/03/batsu-sai.html)
Nagamine Sensei |
Nagamine Shoshin cita em seu livro “Contos dos Grandes Mestres de Okinawa” as palavras do seu Mestre Choki Motobu, um ex aluno de Itosu, em que demonstrava grande desdém por qualquer método não diretamente aplicável em auto-defesa e testava suas habilidades em centenas de lutas reais (briga de rua) nas áreas mais “barra-pesada” de Okinawa, uma prática que lhe rendeu a expulsão do dojo, quando descoberta por Itosu.
Segundo Nagamine, Motobu dizia: “As aplicações dos kata têm seus limites e é preciso entender isso. As técnicas lá contidas não foram feitas para lutas em uma arena com um lutador profissional. Elas são mais efetivas quando empregadas num ambiente sem restrições (sem regras) contra agressores que não têm ideia da estratégia que será usada contra seu comportamento agressivo.”
Choki Motobu |
Karate-Do Kyohan ( antes Rentan Goshin Karate-Jutsu e antes Ryukyu Kenpo Karate)
O Mestre Funakoshi, na edição de 1935 do seu livro “Karate-Do Kyohan” escreveu: “Em Karate, pancadas, socos e chutes não são os únicos métodos. Téquinicas de arremeço e pressão contra articulações também fazem parte… todas essas técnicas DEVEM ser estudadas com referência nos kata básicos.”
Então, apesar do chamado Pai do Karate Moderno e fundador do nosso próprio estilo nos manda treinar as quedas e chaves de articulações contidas nos nossos kata básicos e o que fazemos? Obedecemos? Claro que não! Levamos em consideração? Nem de longe!
Nós, ao invés disso, dizemos aos quatro ventos que isso não é Karate, que Karate é pancada e que essas coisas não passam de inovações influenciadas pelos modernismos recentes advindos do MMA. Levantamos a bandeira de defensores da tradição e guardiões do verdadeiro Karate e…. desobedecemos e traímos nosso Mestre. Que vergonha!
Um homem tão excelente, em todos os aspectos de sua vida que, para nós, é difícil imaginar que alguém assim sequer existiu… Tão moderno já em 1920!!
No mesmo livro, em sua edição original, ele demonstra uma série de quedas e chaves de articulação e, não raro, avisando onde essas técnicas podem ser encontradas nos kata com fotos e textos detalhados. Já escrevi um outro artigo sobre isso (http://www.flaviocosta-karatedo.com/2013/02/as-tecnicas-perdidas-de-arremesso-do.html)
Apesar disso tudo, ainda há muitos karate-ka que negam que haja esse tipo de coisa na arte deles!
Funakoshi demonstrando queda |
Funakoshi Sensei vai mais longe e discute métodos de Torite (Kansetsu-waza) no livro e, alinhado com seu Professor, Itosu, demonstra várias formas de escapar de formas comuns de grappling civil como puxões de cabelos, abraços-de-urso frontais e laterais, pegadas de lapela com uma ou duas mãos, estrangulamentos, etc…
Ele estressa a importância desses métodos e estimula sua prática regular. Para quê? Ora, pra nada! Pois isso foi descartado, esquecido e renegado! Que desperdício!
Karate-Do Kyohan e os outros livros de Funakoshi Sensei foram meus livros de cabeceira na adolescência! Eu li e re-li incontáveis vezes, treinei de acordo por horas e dias e anos, e o faço até hoje, e muito me entristece que seus ensinamentos tenham descido assim, pelo ralo… Uma grande maioria dos karate-ka que conheço nunca leu um livro sequer dele, mas uma boa parte deles abre a boca com propriedade para falar tais coisas. Que petulância!
Outros Fundadores e o Cross-Training
Mabuni ao treinar Kumite REAL |
Tanto Funakoshi quanto Mabuni mensionam o Bubishi como seus livros de cabeceira e de grandes gênios como Itosu, Asato e Matsumura. A Arte era secreta e livros como esse eram raros e impublicáveis. Cada aluno que o quisesse teria que merecer o privilégio de copiar à mão o exemplar de seu Mestre, inclusive as ilustrações!
Imagem do Bubishi |
A palavra Bubishi traduz-se aproximadamente como “Manual de Treinamento em Artes Marciais”. Fala das orígens do Karate, quais escolas e estilos que, amalgamados, engendraram as bases do que chamamos hoje de Karate. Nele, há um capítulo inteiro sobre grappling e como escapar dele. Apesar do grappling nele contido não ser lá muito sofisticado, as técnicas apresentadas são extremamente eficientes e brutais.
O capítulo 29 contém 48 diagramas de auto-defesa, muitos dos quais apresentam técnicas de grappling que podem ser vistas nos kata tradicionais. Quantos aqui leram o Bubishi?
Crii,... criii,... criiii,...crii,.... Foi o que eu imaginei…
Mabuni Karate-Do Nyumon |
Mabuni Kenwa, aluno de Itosu, amigo e parceiro de treinos de Funakoshi Sensei e Fundador do Shito-Ryu, expressou sua preocupação quanto à esse aspecto do Karate estar sendo negligenciado durante a transição de Okinawa para o Japão. Em seu “Karate-Do Nyumon” de 1938, ele diz que o que foi introduzido em território japonês foi uma versão aleijada ou incompleta da Arte e que muitos pensavam erroneamente que era desprovida de grappling.
Ele chegou a dizer que aqueles que não praticavam Karate em sua totalidade estavam aprendendo uma versão ôca da Arte! Poucos sabem que, alé do Karate, Mabuni era Mestre do Shin-den Fudo-ryu Jujutsu e o ensianva a seus alunos concomitantemente. Não só ele treinava o grappling no Karate como suplementava seu conhecimento na área estudando outras Artes.
Otsuka Sensei aplicando uma queda |
Outro Karate-ka que treinava Jujutsu como parte de seu Karate era Hironori Otsuka. Aluno de Funakoshi, foi o primeiro homem a quem outorgou o 5º Dan em Karate, o maior grau que ele concedeu a qualquer um. Quando quis fundar sua própria escola, recebeu o aval do Mestre Funakoshi e fundou o Wado-Ryu ao mesclar o Karate com técnicas do Shindo Yoshin Ryu Jujutsu no qual atindiu o título de Grão-Mestre após anos de estudo sob Tasusaburo Nakayama Sensei.
Nas rotinas de duplas do Wado-Ryu pode-se ver quedas, chaves e até técnicas de solo como Juji-Gatame, entre outras.
Kano Gigoro Sensei |
O próprio Mestre Funakoshi era grande amigo de Gigoro Kano Sensei com quem intercambeou muito conhecimento e, graças a essa amizade, Funakoshi trouxe seu Karate para Tokio e o introduiziu nas universidades. O primeiro dojo de Karate Shotokan do Japão foi dentro da própria Kodokan, berço do Judo!!!
Pelos exemplos de Funakoshi, Mabuni e Otsuka podemos ver que o “cross-training”, longe de ser a blasfêmia que modernos “tradicionalistas” dizem era, de fato, tradicional e encorajado!
Funakoshi e o Tegumi
Funakoshi Sensei |
Um dos sistemas que teve enorme influência no Karate foi o Tegumi de Okinawa. Hoje é um esporte conhecido também como Sumo de Okinawa e Okinawan Wrestling.
Essa Arte é melhor descrita por alguém que a tenha praticado desde a infância nos anos 1870.
Em seu livro “Karate-Do: My Way of Life” Funakoshi Sensei escreveu: “O wrestling de Okinawa tem certas características peculiares. Assim como o Karate, suas orígens são incertas e muitos supõem que há uma inter-relação entre as duas Artes….. “
Tegumi |
“O nome do nosso estilo de wrestling é Tegumi e, para escrever usa-se os mesmos ideogramas que usamos para Kumite em ordem reversa… “
“Tegumi, é claro, é muito mais simples e primitivo do que o Karate e há poucas regras…..
A luta começa como o Sumo, com os oponentes empurrando uns aos outros. Então, à medida que progride, técnicas de grappling e arremeços são usadas. Uma que me lembro era muito similar ao Ebigatama (leg block e three quarter nelson) do wrestling profissional de hoje. Quando assisto wrestling na TV hoje em dia, me lembro do Tegumi dos meus dias de juventude em Okinawa….”
3/4 Nelson |
“Para parar a luta, tudo que um rapaz precisava fazer era “bater”. Alguns rapazes, porém, eram tão aguerridos que lutavam até que caíssem inconscientes. Nesses casos, era o dever do árbitro parar o combate antes. Como qualquer garoto de Okinawa, eu passava muitas horas felizes lutando e assistindo os amigos lutarem, mas foi depois que comecei a aprender Karate seriamente que o Tegumi oferece uma oportunidade única de treinamento...”
Shime waza |
Aqui temos o Pai do nosso Karate descrevendo lutas brutais entre garotos que iam até o nocaute como um prazer na juventude e recomendando em seu livro esse treinamento para o karate-ka!
Ele depois vai mais longe e explica como ele e seus amigos se engajavam em lutas de Tegumi contra múltiplos oponentes onde a meta era evitar ser agarrado e levado para o chão, que é compatível com a natureza do Karate para auto-defesa. Diz Funakoshi Sensei:
Meninas treiando Tegumi em Okinawa |
“Eu raramente tinha grandes dificuldades com um só oponente, mas a dificuldade aumentava exponencialmente à medida que aumentava o número de oponentes. Então, se eu atacava um oponente, os outros aproveitavam uma brecha para me atacarem. É difícil pensar numa maneira melhor para aprender como se defender contra vários oponentes. Pode não parecer mais que uma brincadeira de garotos, mas eu asseguro que nós, que nos entregávamos a essa prática, a levávamos muito a sério!”
Ele também descreve lutas onde os amigos tentavam mantê-lo no chão enquanto ele tentava se levantar. Uma habilidade chave para um karate-ka em situações de auto-defesa.
Motobu treinando Grappling |
Portanto, não me venham mais falar que grappling não é Karate. Não é o foco principal do Karate, mas faz parte de qualquer Arte de combate eficiente, sempre fez e sempre fará. Só não vê quem não quer. As evidências estão aí.
Heian Shodan é grapling e como evitá-lo. Muitos kata começam com grappling, os Tekki (Naihanchi) são um sistema de luta agarrada e infight, Empi (Wanshu) é um kata de grappling, Kanku-Dai (Kushanku) e suas múltiplas variações (Kushanku-Dai, Shiho-no-Kushanku, Ko So Kun-Dai e Kushanku-no-Mai) são kata de luta no escuro que contém muito grappling, Chinte é um kata para evitar ter os punhos agarrados, assim como os kata de Aragaki, Sochin (o original) Unsu e Nijushiho são kata que começam com grappling como uma parte normal de qualquer combate sem regras!
Vivam com isso!
Só não venham me dizer que grappling não é Karate, porque a única coisa que estarão me mostrando é ignorância…
OSS!
Excelente texto. Parabéns
ResponderExcluirperfeito.
ResponderExcluirÓtimo texto. Para se defender é necessário o conhecimento de vários estilos, movimentos e conhecimentos de variadas técnicas. As projeções e agarramentos fazem parte, naturalmente, de ataques de agressores.
ResponderExcluirExcelente texto, aprendi muito mais.obrigado
ResponderExcluirOss... Sensei
ResponderExcluirBelíssima explanação.